Por Juan Ricthelly
Vez ou outra na política latino-americana surgem personagens intrigantes, me arrisco que por conta de sua história e contradições, a América Latina talvez seja o local mais propício do mundo para que isso ocorra.
A eleição no Equador nos apresentou mais um desses tantos personagens, que chamou a atenção por suas singularidades e contradições, Yaku Perez é o seu nome.
Muito se falou sobre Yaku, seu programa, suas declarações e posicionamentos. Parte da militância ecossocialista do Brasil se sentiu confusa, pois não era tão fácil conter a empolgação diante da possibilidade de um indígena ser eleito presidente, com uma plataforma repleta de ecologia, bem viver e referências aos povos indígenas.
Por outro lado, era impossível conter o espanto e até mesmo a decepção com alguns posicionamentos e declarações de Yaku, o youtuber Jones Manoel chegou até mesmo a dizer que ele era uma mistura de Eduardo Jorge, com Vera Magalhães e Ernesto Araújo.
Eu pessoalmente não sei o que dizer ainda, e começo a escrever o presente texto com o propósito de analisar essa figura que me desperta curiosidade e sentimentos tão opostos, para isso, vou adotar o seguinte método:
Vou fazer um Raio X do Yaku, primeiramente analisando a sua biografia e história, em segundo plano a sua plataforma política e por último as suas contradições.
Também recomendo a leitura de outro texto que escrevi em 2019 sobre a política do Equador (A LINHA QUE DIVIDE O EQUADOR[1]), acho que vai ser importante para contextualizar o personagem com o cenário.
DE CARLOS RANULFO À YAKU SACHA
Carlos Ranulfo Guartambel nasceu numa família camponesa de origem humilde, no cantão de Cuenca, localizado na província equatoriana de Azuay.
Sua mãe era a responsável por sua educação, e aos cinco anos o matriculou no Colégio Ramón Ulloa de Escaleras, posteriormente, ingressou na Escola de Tarqui e no Colégio Benigno Malo.
Aos treze anos começou a tocar saxofone nas missas, instrumento que se tornou parte de si e uma marca registrada.
Quando completou 15 anos, teve acesso à energia elétrica em sua casa, combinava os estudos e o amor pelos livros, com o cuidado da terra e dos animais, levando desde cedo um contato cotidiano com a natureza, vida no campo e suas dificuldades.
Em 1990 quando estudava na Universidade de Cuenca, travou a sua primeira batalha pela água, conseguindo expulsar uma mineradora que ameaçava um manancial nas montanhas, a partir disso, a luta pelo acesso à água se tornou parte de sua vida.
Se formou advogado e Doutor em Jurisprudência pela Universidade de Cuenca, tendo adquirido especialidade em Bacias Hidrográficas, Direito Ambiental, Justiça Indígena e mestrado em Direito Penal e Criminologia.
Se converteu em ativista defensor da água e dos povos indígenas, tendo sido presidente da União de Sistemas Comunitários de Água do Azuay (UNAGUA) e Federação de Organizações Indígenas y Camponesas do Azuay (FOA).
Foi eleito Conselheiro pela província de Cuenca de 1996 pelo partido PACHAKUTIK.
Em 2002, no governo Lucio Gutiérrez, liderou as marchas contra a privatização da água, sendo um opositor ferrenho da mineração em Quimsacocha e Río Blanco. Tendo sido acusado de terrorismo em 2011 por fechar estradas como forma de protesto contra a mineração
É autor de 7 livros, alguns traduzidos para dois idiomas:
Introdução ao Direito Parlamentar;
A Assembleia Constituinte; (Microsoft Word - AC reedición.doc (secureservercdn.net))
A Consulta Popular; (Microsoft Word - consulta popular carlos perez.doc (secureservercdn.net))
Consultas Comunitárias no Equador: Direito irrenunciável dos povos indígenas; (Consultas-Comunitarias-en-El-Ecuador-Perez-Guartambel-Yaku-Sacha.pdf (secureservercdn.net))
Água ou Ouro: Kimsacocha, a resistência pela água; (YakuPerez_AGUA-U-ORO.pdf (secureservercdn.net))
A Justiça Indígena; (YakuPerez_Justicia-indigena.pdf (secureservercdn.net))
A Resistência; (La Resistencia (secureservercdn.net))
Foi professor na Universidade de Cuenca, UDA e Universidade Politécnica Salesiana, tendo sido conferencista convidado pela Comissão Interamericana de Direitos Humanos e na Corte de Haya na ONU, sendo palestrante em diversos países e universidades.
Se tornou viúvo em 2012, perdendo a esposa e mãe de suas duas filhas, Ñusta e Asiry. Em 2013 conheceu a jornalista brasileira Manuela Picq, que o procurou para fazer uma entrevista sobre a luta pela água, acabaram percebendo que possuíam uma convergência ideológica que os atraiu, e se casaram numa cerimônia ancestral no Lago Kimsacocha, se tornando companheiros no amor e na luta.
Presidiu a Confederação dos Povos Kichwas do Equador ECUARUNARI durante o triênio 2013/2016.
O ano de 2015[2] foi politicamente turbulento, o país foi tomado por uma onda de protestos massivos que duraram de junho à dezembro, tendo como motivo inicial a criação de um imposto de 75% sobre as heranças e a taxação do lucro imobiliário, o segundo ponto propulsor dos protestos, foram as reformas constitucionais que possibilitariam a reeleição indefinida de Correa, no meio disso, outros grupos e pautas foram chegando, num processo semelhante a Junho de 2013 no Brasil, o movimento indígena por exemplo, pedia uma reforma agrária que redistribuísse 60% das terras cultiváveis, revogação da Lei das Águas e uma educação intercultural bilíngue[3], haviam protestos convocados dos neoliberais aos indígenas, sem coesão ou unidade de pautas comuns.
Nesse mesmo, Yaku e sua esposa viriam a ser brutalmente separados, após participarem de protestos, 46 manifestantes foram presos, onde foram espancados pela polícia, Manuela ficou com vários hematomas pelo corpo e Yaku foi parar no hospital[4].
Em seguida, as autoridades revogaram o visto de Manuela, que já vivia há mais de 10 anos no Equador, e deram início a um processo para deportá-la do país, tendo uma juíza negado o pedido de expulsão[5].
Ao longo dos governos de Correa, Carlos chegou a ser preso por quatro vezes em razão de protestos.
Diante da violência sofrida e das ameaças a sua segurança, Manuela decidiu sair do país, retornando ao Brasil.
Carlos participou das prévias internas do Pachakutik para disputar a presidência em 2016, tendo o partido optado pela líder indígena Lourdes Tíban, no ano seguinte, foi eleito presidente e coordenador da Coordenadoria Andina de Organizações Indígenas, tendo sido reeleito para presidir a organização indígena ECUARUNARI até 2019.
Na eleição de 2017 apoiou Lasso ao invés do candidato correista Lenin Moreno no segundo turno, declarando que era preferível um banqueiro à uma ditadura[6].
No dia 9 de agosto de 2017, Dia Internacional dos Povos Indígenas, “morre” Carlos Ranulfo e nasce Yaku Sacha, num gesto de descolonização de sua identidade, muda legalmente o nome de batismo para um nome indígena, que significa “água do monte” nos idiomas cañari e quéchua. Declarando o seguinte:
“Me identifiquei com o que acredito, com o que sou, com o que defendo. Nasci no dia 26 de fevereiro em um equinócio de inverno, no carnaval. E não há carnaval sem água. Já fui preso cinco vezes por causa da água e acredito firmemente que a defesa da água é a defesa da vida. O mínimo que eu poderia fazer é me identificar com este nome[7]”.
Disputando uma eleição pelo Pachakutik em 2019, vence e vira o Prefeito de Azuay, tomando posse numa cerimônia ancestral cheia de simbolismos no sítio arqueológico inca de Pumapungo, prometendo imediatamente a reduzir o próprio salário pela metade, e a realização de uma consulta popular contra a mineração metálica em fontes de água e áreas sensíveis em toda a província, declarando ainda que a sua gestão seria conhecida como a “Prefeitura da Água”.[8]
Como prefeito economizou 10 milhões de dólares, ia de bicicleta de bambu para a prefeitura, eliminou impostos sobre veículos automotores, deixou 140 sistemas de água em execução, promovia mutirões (minka[9]) com a população para plantar árvores e limpar estradas e rios.
Participou ativamente dos protestos de Outubro de 2019 contra o governo Lenin Moreno, que atendendo à exigências do FMI para a concessão de um empréstimo, baixou um decreto que retirava o subsídio dos combustíveis, eliminava o imposto de importação, propunha uma reforma tributária favorável às grandes empresas, bem como a redução de 20% do salário e 50% dos dias de férias do funcionalismo público.
Diante disso, houve uma onda de protestos que durou 12 dias, levando milhares de equatorianos às ruas, que foram duramente reprimidos pelo governo, que chegou a decretar estado exceção, militarização e toque de recolher, deixando um saldo de 10 mortos. No fim, o governo se viu forçado a recuar e revogou o decreto.
Abandonou a prefeitura de Azuay para disputar a eleição presidencial pelo Pachakutik, obtendo o apoio de 23 dentre 26 organizações do partido, disputando as prévias com outras figuras bastante conhecidas, como Salvador Quispe, Leonidas Iza e Jaime Vargas, que declinaram de suas candidaturas.
Yaku Perez chegou a ser surpresa da eleição equatoriana, tendo num primeiro momento, sido considerado o segundo mais votado, o que lhe garantiria participação no segundo turno da eleição, que ocorrerá em Abril.
O Conselho Eleitoral decidiu recontar os votos, mudando o cenário anterior, ficando Arauz com 32,7% dos votos, Lasso com 19,71% e Yaku com 19,38%, deixando-o Yaku fora do segundo turno,
Diante desse cenário, Yaku iniciou uma campanha de denúncia de fraude eleitoral, com o propósito de retirá-lo do segundo turno, exigindo transparência, respeito à lei e uma recontagem ampla de votos, promovendo marchas e protestos com forte apoio do movimento indígena[10].
PLATAFORMA POLÍTICA
A plataforma política de Yaku chama bastante a atenção pelo seu forte apelo ecológico e anticorrupção, se dividindo em quatro eixos temáticos (ecologia, economia, educação e ética), chamados de Minkas.
A Minka pela Ecologia faz um convite para a conversão do Equador numa potência ecológica, baseada numa economia sustentável e embasada no biocentrismo, chamando a atenção para o aquecimento global, as guerras pela água e a escassez de alimentos, propondo uma consulta popular nacional para impedir a mineração em fontes de água e zona de alta biodiversidade, manter o petróleo do Parque de Yasuní no solo, ratificação de tratados internacionais para a proteção de rios e fontes de água, estímulo à cidades ecológicas que promovam a qualidade do ar, reciclagem e redução do uso de plástico e o uso de bicicletas, criação de um programa de proteção de fontes de água e ampliação das zonas de recarga hídrica, promoção da agroecologia e conscientização sobre a proteção de animais.
A Minka pela Economia aponta a corrupção sistémica como o principal responsável pelos problemas econômicos do país, e propõe a criação de 500 mil unidade produtivas para várias setores com o propósito de gerar emprego, redução das taxas de juros do sistema financeiro, eliminação do imposto de importação para maquinas para o setor agropecuário e artesanal, se posiciona contrário à privatização da seguridade social e dos setores elétrico, petrolífero, telecomunicações e bancos estatais, mantém a dolarização da economia, auditoria de contratos, redução do número de parlamentares pela metade, baixar os salários do presidente e de várias autoridades, eliminar o salários vitalício de todos ex presidentes e ex vice presidentes, dentre outras medidas.
Na parte relacionada à Educação, se destaca a proposta de acesso livre às universidades, eliminando os exames admissionais, a criação de institutos técnicos e tecnológicos, disponibilização de internet e tablets para estudantes pobres e o fortalecimento da educação pública.
No que diz respeito à Minka pela Ética, as mulheres e seus direitos ganham um lugar de destaque, por meio de propostas como: a criação de um Ministério da Mulher, promoção da paridade de gênero no exercício de cargos públicos, restabelecer a Comissão da Mulher e Gênero no Congresso, fortalecer a implementação de Lei de Erradicação da Violência contra a Mulher, investimento em políticas de proteção às garotas e autonomia econômica das mulheres.
Para além disso, no conjunto de entrevistas dadas pelo próprio Yaku é possível perceber um forte discurso pós extrativista, com perspectiva de uma transição gradual da matriz energética para um modelo limpo e não poluente.
Fala também sobre a ideia de Economia Circular que busque usar, utilizar, transformar, reutilizar e reciclar, estando em sintonia como a natureza e respeitando o meio ambiente.
Propõe ainda, a criação de uma Renda Básica Universal, a moratória e a renegociação da dívida externa, a não expansão da fronteira petrolífera, revisão do acordo com o FMI e renegociação da dívida com a China.
No que diz respeito à política externa, não possui um discurso anti americano e propõe uma relação amistosa com os demais países.
Questionado sobre a grande quantidade de imigrantes venezuelanos em seu país, lembrou que o Equador já viveu algumas diásporas, tendo muitos imigrantes em outros países, demonstrando um discurso acolhedor e não hostil à imigração.
CONTRADIÇÕES
Não demorou muito para que várias contradições de Yaku fossem apontadas à torto e à direita, sendo acusado de anticomunista, apoiador de golpes na América Latina e de proximidade com os Estados Unidos e inclusive de pedir um golpe de Estado no Equador em razão de seu descontentamento com o revés que sofreu.
Pessoalmente eu não sabia no que acreditar, visto que vislumbrei indícios de fake News, distorção de falas e conteúdo, apresentados sem o contexto em que foram ditos, e achei importante analisar mais a fundo esses detalhes.
Um artigo escrito por Benjamin Norton, publicado em primeira mão no portal The Greyzone[11], depois reproduzido em português no site da Editora LavraPalavra[12] e mencionado em outro artigo publicado no site Brasil de Fato[13], chama a atenção pelo forte tom sensacionalista: “Respaldado por EEUU, el candidato ‘ecosocialista’ de Ecuador, Yaku Pérez, apoya golpes de estado y ayuda a la derecha”.
Ao ler o artigo a coisa só piora. Para facilitar a análise vamos pontuar cada uma das afirmações.
Apoio da Embaixada dos Estados Unidos
Se alega que o próprio Yaku recebeu um telefonema da Embaixada dos EUA afirmando que ele estaria no segundo turno das eleições, sugerindo que ele é o candidato de Whasington, e aqui já aparecem três problemas:
1. Não indicam uma fonte primaria de informação onde seja possível verificar que o Yaku disse realmente isso, um tweet dizendo que ele disse é apresentado como fonte;
2. Yaku não foi para o segundo turno;
3. Pelo o que conhecemos dos EUA e sua política, Lasso tem muito mais perfil para ser um candidato de Whasington.
Diante disso, concluo que essa afirmação não foi verdadeira e foi vencida pela realidade.
Apoio a Golpes de Estado na América Latina
Foi alardeado que Yaku apoiou Golpes de Estado na Bolívia, na Venezuela, Nicarágua e Brasil, nesse ponto, é importante mencionar que Yaku fez declarações um tanto controversas sobre processos políticos ocorridos em outros países, demonstrando ignorância e uma compreensão rasa dessas realidades.
Por outro lado, é importante contextualizar que o governo de Rafael Correa como parte da Onda Rosa que governou a maior parte da América do Sul, por meio de governos considerados progressistas, e que Yaku por ter sido perseguido, preso e agredido por se opor ao governo de Correa, possivelmente estendeu o seu ressentimento político, que é justo diante de tudo o que sofreu, aos aliados políticos de seu verdugo local.
E aqui é importante mencionar que sendo casado com uma brasileira, era de esperar que Yaku tivesse uma compreensão mais realista do que foi o Golpe de 2016 e o que ele significou politicamente para o Brasil e seu povo.
Pachakutik como partido financiado pelos EUA
Um dos ataques mais absurdos que foram disseminados, foram contra o Pachakutik, o colocando como um partido “ongueiro” financiado pelo capital internacional, com o propósito de cooptar a esquerda e ajudar a direita equatoriana.
Quem conhece minimamente a história política do Equador, seguramente fez careta quando leu isso, pois a história e a atuação do Pachakutik não condizem com tal afirmação que chega aos limites do absurdo, soando como mais uma teoria conspiratória.
O Pachakutik é o braço político da Confederação das Nacionalidades Indígenas do Equador (CONAIE) criada em 1972, sendo fortemente enraizada nos territórios indígenas por meio de um sólido trabalho de base feito junto às populações locais, tendo sido protagonista de protestos e na oposição aos governos neoliberais dos anos 90, barrando muitas medidas e derrubando presidentes e governos, antes mesmo do correismo ser uma força política relevante.
A CONAIE e os movimentos sociais, resolvem por ingressar na política institucional criando um partido em 1996, o Movimento de Unidade Plurinacional Pachakutik (MUPP), um partido com a cara do movimento indígena, conseguindo de início 10% das cadeiras do Congresso Nacional, emplacando também alguns candidatos regionais.
Em 1998 houve a última Assembleia Constituinte do século XX no Equador, inovando ao reconhecer uma série de direitos sociais, coletivos e dos povos originários, mas também possibilitando brechas para a ocorrência de manobras pró mercado.
Entre 1996 e 2007 o Equador teve 7 presidentes, em meio a crises econômicas e políticas que levaram à dolarização da moeda em 2000, fazendo com que o país perdesse a sua capacidade de emitir o próprio dinheiro.
A CONAIE e os movimentos sociais equatorianos, apoiaram a candidatura de Lúcio Gutierrez em 2002, chegando a ocupar cargos no governo, para logo em seguida cair na mesma armadilha, rompendo com o presidente, depois de apoiar abertamente algumas medidas controversas, perdendo assim, parte de seu capital político nessa aposta equivocada, entrando para o imaginário do povo, como mais um partido como qualquer outro.
É compreensível criticar a CONAIE e o Pachakutik por seus erros políticos, mas é inaceitável ignorar a história e a construção desse partido, que representa o movimento indígena equatoriano, o classificando como um partido à serviço dos Estados Unidos.
Relações Amistosas com os EUA
O restante do artigo parece mais uma matéria de uma revista de fofoca sensacionalista, fazendo alarde sobre alguns detalhes e ações de Yaku, que propositalmente passam despercebidos ao avaliar outros políticos como Rafael Correa e Arauz.
Basicamente acusa Yaku e sua esposa de serem agentes infiltrados do imperialismo estadunidense, por terem se encontrado com embaixadores americanos, ter imigrantes americanos morando em Cuenca (capital de Azuay), que falam inglês e pagam tudo em dólares (What the Fuck?), sendo que a moeda do Equador é o dólar e tudo no país se paga em dólar.
Em entrevista recente ao se pronunciar sobre a relação que o Equador e seu candidato devem ter com os EUA, Correa respondeu o seguinte:
Arauz disse que terá um excelente relacionamento com os Estados Unidos. O que você acha?
E quem não deseja ter um excelente relacionamento com os Estados Unidos? Eu queria ter tido. Eu acho que tive. Trump era um troglodita, as pessoas são importantes. Acho que Joe Biden é uma boa pessoa. No entanto, os Estados Unidos são uma máquina, então não esperemos que a política externa para a América Latina mude muito. Mas, em um nível pessoal, há obviamente uma diferença colossal entre Joe Biden e Trump[14].
Ben Norton vai criticar essa declaração e denunciar Correa por isso?
É claro que não!
Oposição à Rafael Correa
Há um trecho da nota que é um show de ignorância e omissão de fatos sobre a política equatoriana, que leva o seguinte título: “Los “ecosocialistas” se alían con la derecha en intento de golpe contra Rafael Correa”.
O viés correista que permeou todo o artigo se escancara sem nenhum pudor nessa parte, fazendo uma análise acrítica da Revolução Cidadã, como se tivesse sido um processo político perfeito e sem contradições, adotando um discurso maniqueísta, colocando os opositores de Correa no mesmo balaio, sem qualquer diferenciação, sugerindo mais uma vez que, a CONAIE, o Pachakutik e Yaku, foram e ainda são agentes do imperialismo estadunidense com o único propósito de desestabilizar politicamente Correa e seu projeto.
O texto só não conta que a Constituição de 2008, resultado de umas principais bandeiras políticas de Correa, consagra uma série de valores indígenas, como o respeito à natureza como sujeito de direitos, o bem viver e o respeito à plurinacionalidade e a autonomia dos povos originários sobre os seus territórios.
E que já em seu segundo ano de governo, Correa sinalizou que iria em sentindo contrário, perdendo assim o apoio que tinha do movimento indígena, entre preservar os direitos da natureza e explorar petróleo e minérios, o governo optaria pelo segundo, desrespeitando a constituição e os princípios do bem viver nela estabelecidos, sendo a Lei de Mineração de 2009, o marco dessa divergência aberta entre o movimento indígena e o correismo.
O Parque Nacional de Yasuní ITT, é um símbolo das contradições da revolução cidadã, se trata de uma área com mais de 1 milhão de hectares, sendo um dos locais com maior biodiversidade no planeta, com o título de patrimônio da biosfera da UNESCO. Só há um pequeno problema, na verdade um problema enorme, estima-se que no solo desse parque existam 850 milhões de barris de petróleo, que dariam uma sobrevida ao extrativismo, aumentando às reservas petrolíferas em 20%, mas para que toda essa “riqueza” seja explorada, a riqueza que existe no parque teria que ser destruída.
Ciente do que essa escolha significa, diante das experiências anteriores com a exploração de petróleo no Equador, tendo a localidade de Shushufindi como exemplo material dos danos ambientais e sociais causados pela exploração petrolífera, se apresentou como alternativa o pagamento de 3 bilhões de dólares por parte da comunidade internacional ao Equador no prazo de 10 anos, como uma compensação ao país para que o parque permanecesse intocado, infelizmente nem 10% desse valor foi levantado, e contrariando a constituição e os preceitos do Sumak Kawsay expressos nela, Correia tencionou para a aprovação da Lei de Mineração, perdendo o apoio do movimento indígena e de Alberto Acosta, seu ex-ministro de Minas e Energia e Presidente da Assembleia Constituinte.
O pensamento de Correia sobre essa questão pode ser resumido na sua seguinte fala:
“A riqueza mineral neste país é imensa, supera os 200 bilhões de dólares. Vamos deixar tudo isso intocado em nome de que não se derrube uma árvore ou um pássaro? – perguntou-se o presidente numa de suas defesas à mineração. – Destruir a selva pode ser imoral, mas ainda mais imoral é renunciar aos recursos que podem tirar o país do subdesenvolvimento, que podem eliminar a miséria e a pobreza de nossa pátria.”[6]
É um fato inegável que a chegada de Correia ao poder foi um marco histórico inédito na política equatoriana, que trouxe muitos avanços e conquistas sociais, principalmente por ele não ter dado um giro neoliberal como boa parte de seus antecessores, proporcionando um momento raro de estabilidade política, num país que teve 11 presidentes desde 1979 e uma sequência de embates políticos de resistência ao neoliberalismo.
Mas nem tudo são rosas... Segundo o Karla Calapaqui em seu livro Criminalización de la protesta, 2007-2015: las víctimas del correismo, houve mais de 90 casos de criminalização de protestos, com mais de 800 pessoas envolvidas e ao menos três pessoas mortas pelas mãos de agentes do Estado. Assim como mudanças constitucionais no final de 2015, que restringiam os mecanismos de consulta popular, atribuíam tarefas de segurança interna às Forças Armadas; definiam a comunicação como um serviço público, a fim de que o Estado pudesse controlá-la; retirada de direitos dos servidores públicos; reeleição indefinida; repasse de competências dos governos municipais ao governo central (centralização); e redução da função fiscalizadora da Controladoria, entre outras mudanças.
Imerso em contradições, Correa conseguiu eleger o seu sucessor em 2017, numa eleição polarizada, Lenín Moreno venceu com 51,16%[7] dos votos com a promessa de continuar com os avanços da Revolução Cidadã iniciada dez anos antes, mas apenas três meses depois de eleito, Moreno começou a dar sinais de que as coisas não seriam bem assim, havendo um rompimento entre ele o seu antecessor e padrinho político, que se converteu em inimigo.
Moreno iniciou uma aproximação com os EUA, se distanciou da Venezuela e entregou Julian Assange, que estava asilado na Embaixada do Equador em Londres desde 2012. No ano de 2019, o sucessor de Correa, tentou por meio do Decreto 883, fazer com que o Equador retornasse ao Consenso de Whashington, adotando um conjunto de medidas, chamadas de “paquetazo”, com intuito de atender às exigências do Fundo Monetário Internacional (FMI), para obter um empréstimo na ordem dos 4,2 bilhões de dólares.
Dentre às medidas propostas, estavam corte de até 20% nos salários de servidores com contrato temporário, redução das férias de 30 para 15 dias, o pagamento de um dia de salário mensal por parte dos funcionários públicos para o Estado, mas a medida mais polêmica foi o fim dos subsídios aos combustíveis fosseis, que existem há 40 anos, causando um aumento imediato no preço da gasolina e do diesel, e um efeito cascata no preço de outros produtos.
Diante disso, iniciou-se uma onda de protestos que teve repercussão internacional, a CONAIE voltou às ruas com a força que tinha nos anos 90, pela primeira vez desde a Revolução Cidadã, tendo assumido um lugar de destaque nos protestos, que foram vitoriosos com a capitulação de Moreno, se comprometendo a revogar às medidas do paquetazo depois de 12 dias de protestos intensos.
Nem mesmo toda violência empregada, o silêncio e a conivência da mídia, o apoio do FMI, EUA, Brasil e Argentina foram capazes de frear esse recente levante no Equador, que mais uma vez ao longo de sua história, assume a vanguarda da luta contra o neoliberalismo na América Latina.
Impressionou a força e o fôlego do movimento indígena equatoriano e o seu retorno às ruas como protagonista. Correa que ainda se encontra exilado na Bélgica, sem poder voltar ao Equador em razão de uma avalanche de processos judiciais que enfrenta, se manifestou diversas vezes pelas redes sociais em apoio aos protestos e criticando Moreno e suas medidas, sugerindo inclusive a antecipação das eleições, como é permitido na constituição equatoriana, no que foi rechaçado pelo movimento indígena, que o taxou de oportunista por tentar capitalizar em proveito próprio o levante popular.
Yaku esteve presente nos protestos de 2019, tendo sido denunciado pelo crime de rebelião[15], por estar acompanhado de um grupo de manifestantes que invadiu a Assembleia Nacional, declarando que não estar surpreso, visto que tal denuncia vinha da direita violenta que respondia às ordens do FMI. Nessa ocasião ressaltou suas diferenças ideológicas com o correismo, mas não deixou de expressar solidariedade aos prefeitos de Pichincha e Sucumbíos, que haviam sido presos preventivamente por motivos semelhantes. Não perdendo a oportunidade comparar a repressão daquela situação com a ocorrida nos anos de Correa no poder.
Intervenção das Forças Armadas na eleição
Um dos pontos mais polêmicos sobre Yaku foi uma publicação onde ele reproduz um artigo do articulista Simón Espinoza do El Comercio[16], onde o mesmo invoca a constituição equatoriana defendendo a intervenção das Forças Armadas e da Polícia Nacional no processo eleitoral, para garantir a lisura e a transparência, sugerindo medidas duras e questionáveis, como a substituição de todos os membros titulares do CNE, a anulação do primeiro turno e a sua repetição com os mesmos candidatos e intervenções em alguns órgãos.
No contexto histórico político da América do Sul, esse tipo de declaração e apoios recebidos, são extremamente preocupantes, não dá para relativizar sugestão de tutela das Forças Armadas em processos democráticos, o nosso passado não nos permite tal absurdo.
É lamentável que uma personalidade com a história e biografia de Yaku, reproduza esse tipo de conteúdo, ignorando que lugar de militar é no quartel ou na guerra.
Compreendo que Yaku tem todo direito denunciar o processo eleitoral como fraudulento, desde que apresente as provas e indícios que fundamentem suas suspeitas, como fez por meio de suas redes sociais ao longo de todo o processo, mas apoiar esse tipo de opinião é algo digno de repúdio.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Demorei umas duas ou três semanas para escrever esse texto, que comecei sem saber como terminaria, foi um exercício interessante ver entrevistas, vídeos, ler matérias e artigos para chegar nesse resultado, dei uma breve revisada no que havia estudado para produzir o texto de que escrevi em 2019.
Senti falta de informações seguras e confiáveis, assim como outros companheiros ecossocialistas, várias informações contraditórias chegavam a todo instante, e pessoas que teriam condições de fazer esse debate com qualidade e com um alcance maior, preferiram cair na armadilha emitir opiniões superficiais ignorando toda a complexidade e o contexto político do Equador, infelizmente o Brasil de Fato, a editora Lavra Palavra e até mesmo o Jones Manoel, optaram por esse caminho, de reproduzir a matéria produzida por Ben Norton no The Greyzone, repleta de sensacionalismo e maximização de aspectos irrelevantes para o debate político.
Diante disso tudo, eu chego à conclusão de que Yaku Perez é uma figura política ambígua e com as suas contradições, e qual personalidade política, não é?
É fato que ele se posicionou politicamente de forma que considero lamentável em alguns aspectos, e isso pode e deve ser criticado, mas com no mínimo honestidade intelectual.
Por outro lado, ele é uma pessoa que construiu a sua vida por meio da luta, tendo uma biografia digna de respeito e até mesmo admiração, defendendo políticas ecologicamente radicais que tenho total acordo.
Representa um campo político fortemente enraizado no movimento indígena, que se colocou como oposição ao correismo em razão de suas capitulações, que relativizaram os Direitos da Natureza, das comunidades e os princípios do Sumak Kawsay (Bem Viver) expressos na constituição equatoriana, em benefício de uma política econômica extrativista.
De modo que acho simplista acusá-lo de reacionário, ou de ser agente do imperialismo com o propósito de desestabilizar a política equatoriana, em proveito dos interesses norte-americanos, junto com a CONAIE e o Pachakutik, sendo que conjunto das lutas travadas por esses movimentos e pelo personagem ao longo dos anos, vai contra esses interesses.
E mais uma vez, acho que é válida a crítica à CONAIE, ao Pachakutik e até mesmo ao Yaku, mas sem sensacionalismos ou até mesmo fake News.
Nesse aspecto entendo, que ele foi vítima de uma campanha de difamação que ganhou eco internacional, que foi reproduzido por parte da esquerda brasileira. Um artigo do professor Salvador Schalvezan da USP, publicado no portal Desinformemonos[17], faz um contraponto interessante à essa campanha.
Rafael Correia chegou a dizer que Yaku nem mesmo era indígena[18] em uma entrevista, uma afirmação grave, que desrespeita e nega a identidade de uma importante liderança do movimento indígena, e que vai além de qualquer divergência política.
Sendo assim, mesmo com todas as contradições que existem a respeito de Yaku, algumas sendo verdadeiras e outras não, eu ainda votaria nele para presidente do Equador, caso fosse equatoriano, por acreditar que teria mais acordos que descordos.
Lamentavelmente Yaku não foi para o segundo turno, mas é e seguirá sendo durante muitos anos, um ator político importante no Equador, tendo chances de vir a ser presidente algum dia.
E fico feliz por ter escrito essa contribuição com o propósito de esclarecer alguns pontos sobre esse debate, que poderia ter sido feito de outra maneira.
ENTREVISTAS:
[1] https://www.gamalivre.com.br/2019/10/a-linha-que-divide-o-equador.html
[2] https://es.wikipedia.org/wiki/Manifestaciones_en_Ecuador_de_2015
[3] https://brasil.elpais.com/brasil/2015/08/14/internacional/1439524788_047539.html
[4] https://www.correiobraziliense.com.br/impresso/2015/08/2661570-brasileira-sera-expulsa-do-equador.html
[5] http://g1.globo.com/mundo/noticia/2015/08/jornalista-brasileira-deixara-o-equador-apos-se-livrar-da-deportacao.html
[6] https://www.eluniverso.com/noticias/2017/02/22/nota/6059647/perez-guartambel-es-preferible-banquero-dictadura/
[7] https://www.elcomercio.com/actualidad/perezguartambel-yaku-nombre-cambio-ecuarunari.html
[8] https://www.eluniverso.com/noticias/2019/05/14/nota/7329800/ceremonia-ancestral-yaku-perez-esta-listo-asumir-prefectura-azuay/
[9] Minka: A minga é uma tradição pré-colombiana de voluntariado comunitário ou coletivo para fins de utilidade social ou caráter recíproco atualmente em vigor em vários países latino-americanos. Isso pode ter propósitos diferentes de utilidade comunitária, como a construção de edifícios públicos ou para beneficiar uma pessoa ou família, como quando colhe batatas ou outro produto agrícola, entre outros, sempre com um salário para aqueles que ajudaram. É realizado principalmente na Colômbia, Peru, Equador, Bolívia, Chile e Paraguai.
[10]https://www.em.com.br/app/noticia/internacional/2021/03/01/interna_internacional,1242224/lider-indigena-yaku-perez-volta-a-pedir-recontagem-de-votos-no-equador.shtml
[11] https://thegrayzone.com/2021/02/08/eeuu-ecuador-yaku-perez-golpes-pachakutik/
[12] https://lavrapalavra.com/2021/02/15/como-o-candidato-ecossocialista-apoiado-pelos-estados-unidos-e-apoiador-do-golpe-do-equador-yaku-perez-ajuda-a-direita/
[13] https://www.brasildefato.com.br/2021/02/10/candidato-ecossocialista-do-equador-indigena-e-apoiador-dos-golpes-na-america-latina
[14] https://internacional.estadao.com.br/noticias/geral,yaku-perez-nao-e-de-esquerda-ele-nem-e-indigena-diz-correa-sobre-possivel-rival-de-seu-aliado,70003612956
[15] https://www.eluniverso.com/noticias/2019/10/17/nota/7563101/yaku-perez-protestas-ecuador-denuncia-rebelion/
[16] https://www.elcomercio.com/opinion/columnista-elcomercio-opinion-pro-pais.html?fbclid=IwAR3MUTVtZC8O0zFAbjkUNA8AEFAWgj5r3Mk370pyQ_RThKgV-dyCLksBK3k
[17] https://desinformemonos.org/las-varias-caras-progresistas-en-campana-sucia-contra-el-candidato-indigena-del-ecuador/
[18] https://internacional.estadao.com.br/noticias/geral,yaku-perez-nao-e-de-esquerda-ele-nem-e-indigena-diz-correa-sobre-possivel-rival-de-seu-aliado,70003612956
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