O SENTIMENTO DE PERTENCIMENTO COMO FAZER POLÍTICO
Atualizado: 1 de nov. de 2021
A política no nível comunitário, possui outra dinâmica, embasada em outra lógica, que se distingue da macro política.

Certa vez questionaram o escritor cubano Leonardo Padura, numa entrevista no Roda Vida da TV Cultura, o motivo dele seguir vivendo em Cuba, mesmo tendo um passaporte espanhol e condições financeiras de viver onde quisesse.
E ele respondeu que, que antes de qualquer coisa era um escritor cubano, que gostava de escrever sobre a realidade cubana, sendo assim, precisava viver essa realidade.
Relatou que ainda vive em Havana, no mesmo bairro e na mesma casa que viveram seus pais, avós e bisavós, e que viver e poder escrever sobre essa realidade era o combustível de sua escrita e inspiração, que poderia viver melhor e com mais conforto em qualquer outro lugar, mas que somente ali ele tinha o que define como “Sentimento de Pertencimento”.
Li somente um livro de Padura até hoje, o romance “O Homem que Amava os Cachorros” que conta de uma forma brilhante a história do assassinato de León Trotsky sob a perspectiva da vítima e do algoz, o espanhol e espião soviético Ramón Mercader.
E essa leitura me levou a buscar mais informações sobre Padura, de modo que vi várias de suas entrevistas e me impressionei com as perspectivas que ele apresentava sobre Cuba e sua situação, falando com uma humildade profunda e ao mesmo tempo cheia de uma riqueza repleta de sabedoria. E o que mais me chamou a atenção, foi essa definição de pertencimento que ele falou por mais de uma vez, por ser um sentimento que trago em mim em relação ao lugar que vivo nesse mundo.
E refletir sobre esse ‘sentimento de pertencimento’ não foi um exercício complexo para mim, pois é exatamente o que sinto em relação ao Gama, bairro-cidade localizado há 35 km do centro da Capital Federal.
Já estive em alguns lugares pelo mundo e pelo Brasil, adoro viajar, conhecer novas culturas e outras maneiras de se viver, fazer amigos e criar vínculos com pessoas de todos os lugares por onde andei, mas o sentimento e a paz que sinto por viver exatamente aqui, é algo único no mundo para mim.
Adorei caminhar pelo famoso Malecón em Havana observando o Mar do Caribe, me encantei com o Obelisco de Buenos Aires e com a força da Plaza de Mayo, admirei de longe as Torres del Paine na Patagônia Chilena e caminhava o dia inteiro na Terra de Fogo, conhecida como o fim do mundo, amei Cusco, com suas ruas de pedra e muros antigos, Machu Pichu com seus abismos, montanhas e conexão com a natureza, a arquitetura colonial de Arequipa... Vi o sol nascer no Atlântico e ser pôr no Pacífico.
Olhei boquiaberto para São Paulo, com seus prédios, multidões e aquele ar de metrópole caótica dos trópicos, o Rio de Janeiro me deixou sem ar, em razão de todo aquele imaginário incutido em nós por meios das novelas de Manoel Carlos ao som de Bossa Nova na introdução.
Sonho em ir sair por aí, pelo mundo sem rumo e ver muito mais coisas, conhecer pessoas incríveis, provar cervejas com nomes e rótulos estranhos, admirar horizontes em silêncio... Mas só existe um único lugar no mundo para onde o meu coração sempre quer voltar ao final de uma longa viagem.
Nasci aqui há 30 anos atrás, no fim de uma era marcada pela disputa de duas superpotências globais, no final da história como alguns diziam ser.
E é somente nessa cidade, que posso olhar com carinho para aquele hospital velho onde nasci, onde esbarro com os meus amigos do jardim de infância do CAIC Carlos Castello Branco na fila da padaria, onde tenho uma história para cada rua, esquina e banco de praça... Onde encontro uma professora do Ensino Fundamental ao caminhar pela feira no Domingo... Onde posso sentar num boteco qualquer e ser reconhecido pelos cachaceiros e boêmios, por ser um deles... Onde posso abraçar minhas vizinhas, aquelas senhoras que me viram nascer e me tornar quem sou hoje... Onde conheço os riachos pelos nomes e as cachoeiras pelos sons de seus prantos sem fim.
Viver longe disso tudo e de tantas outras coisas que não descrevi, é algo impensável para mim, e ao refletir sobre tudo isso, sobre essa relação com o lugar onde vivo e com as pessoas com quem compartilho esse sentimento, pude compreender sobre essa definição dada por Padura, essa sensação de se sentir como parte de um lugar, e de pertencer a ele de alguma maneira.
E esse ‘sentimento de pertencimento’ é algo tão forte, que transcende às diferenças políticas e ideológicas em alguns momentos, de modo que, não raras vezes me vi ao lado de pessoas com quem tinha divergências políticas profundas, lutando juntos por algo de interesse do bem comum de nossa comunidade, colocando nossas diferenças de lado, para naquele momento alcançar algo que era importante para todos nós, uma praça, um posto de saúde, um parque, um equipamento público...
E a não compreensão desse sentimento, é algo que leva algumas pessoas a terem dificuldade de entender que a política no nível comunitário, possui outra dinâmica, embasada em outra lógica, que se distingue da macro política.
Ao contrário dos parlamentares e chefes do Executivo, na comunidade os atores políticos são reais em razão do alcance e proximidade, as lideranças comunitárias são pessoas comuns, que não foram eleitas por alguém ou um grupo de pessoas, são o que são em razão do reconhecimento da própria comunidade, que enxerga naquela pessoa alguém com capacidade e vontade de defender os seus interesses mais cotidianos.
Há divergências e desentendimentos entre as lideranças o tempo inteiro, mas todo mundo se encontra em algum momento, em alguma audiência pública, na fila da padaria, na feira, na barraca de churrasquinho grego em frente à UNICEPLAC, num boteco qualquer do Setor Leste, e se cumprimentam como se nada tivesse ocorrido, horas depois de protagonizarem uma briga ferrenha em um grupo de WhatsApp ou em alguma página no Facebook.
E isso tudo e muito mais, só é possível porque essas pessoas compartilham em alguma medida, aquele sentimento de pertencimento do qual iniciamos esse texto.