BRASÍLIA, RODOVIAS E O PAPEL COLONIZADOR DO ESTADO NACIONAL BRASILEIRO
Atualizado: 8 de mai. de 2022
Matéria de jornal e vídeo da década de 60 refletem mentalidade colonizadora ainda presente no Brasil do século XXI

Por Juan Ricthelly
Formalmente deixamos de ser colônia portuguesa em 1822, embora o Brasil tenha sido elevado à condição de Reino Unido a Portugal e Algarves em 1808, com o Rio de Janeiro como capital do império português, sendo a sede da corte e o lar da família real.
As consequências de termos sido uma colônia, até hoje se fazem presentes, e são sentidas de forma dolorosa pelos povos indígenas que sofreram um verdadeiro genocídio e tiveram suas terras roubadas, e pelos povos africanos trazidos pelo tráfico transatlântico para serem escravizados ao longo de séculos.
O Brasil foi o último país a abolir a escravidão em 1888 sob forte pressão do Império Britânico, que quem mandava no mundo naquela época, um ano depois a República seria proclamada por meio de um Golpe de Estado do Exército, que pegou gosto pela coisa.
O Estado Nacional Brasileiro foi nascendo aos trancos e barrancos, meio que na base do improviso contando com a sorte e o azar como sócios dessa empreitada, mas sem renunciar à mentalidade escravocrata, colonizadora e elitista que o acompanha desde sempre.
Em 1960 ocorreria a tão sonhada inauguração da nova capital do Brasil, fruto de um debate que remonta ao Marquês de Pombal, que argumentava sobre a necessidade de mudar a capital para o interior do país, em razão da segurança geográfica que o Planalto Central conferiria e a sua posição estratégica para o povoamento do restante do território nacional.
Brasília foi então construída com a promessa de novos tempos para o nosso país, por meio da força de milhões de trabalhadores nordestinos que apostaram tudo na construção dessa nova cidade, sonhando com um futuro melhor.
Outro aspecto importante desse processo, foi a opção pelas rodovias como principal meio de locomoção e integração dos centros urbanos, por meio de uma narrativa histórica onde muito se fala dos pioneiros e seu papel ‘desbravador’, mas onde pouco é dito sobre como isso ocorreu na prática.
Por sorte, há documentação e um acervo histórico que nos possibilita analisar a perspectiva que norteou esses acontecimentos, para esse artigo convidamos você para analisar dois registros históricos importantes, a saber:
I - O JORNAL, ESTADO DE MINAS, FOLHA DE GOIAZ, CORREIO BRAZILIENSE de 21 de Abril de 1960 (Fonte: Hemeroteca da Biblioteca Nacional)
II - CONSTRUÇÃO DA RODOVIA BRASÍLIA-ACRE (1960) (Fonte: Vídeo do Arquivo Nacional)
RODOVIA BRASÍLIA-ACRE VAI TRAZER TRIBOS SELVAGENS PARA CIVILIZAÇÃO BRASILEIRA
A abertura da estrada Brasília-Acre vai precipitar a catequização de várias tribos de índios selvagens que habitam região ainda não palmilhada por brasileiros civilizados.
— “Nós, do Serviço de Proteção aos Índios, estamos preocupados com a possível reação hostil dos índios Pacaás-Novos, Suruius, Nhambiquaras e alguns grupamentos Xavantes. Precisamos evitar que os pioneiros e os selvagens se tornem inimigos”.
Com essa declaração, o General José Guedes, diretor do SPI, iniciou a entrevista que concedeu ao JORNAL com exclusividade sobre o plano elaborado para conquistar as tribos que habitam a região a ser atravessada pela extensa rodovia.
TRABALHO URGENTE
O plano elaborado compreende trabalhos que se desenvolverão durante 4 anos e prevê uma verba de 35 milhões de cruzeiros.
Comparando os trabalhos realizados pelo SPI na estrada Belém-Brasília com os que deverão ser levados a efeito na Brasília-Acre, o General Luiz Guedes comenta:
— “Na Belém-Brasília, a atuação do SPI tornou-se mais necessária na fase de povoamento. Na nova rodovia, a colaboração do SPI deve ser imediata. Temos que organizar, o quanto antes, turmas que entrem em contato com os selvícolas antes mesmo que apareçam os primeiros trabalhadores que abrirão a estrada”.
PLANO DE TRABALHO
— “As regiões que requerem maior atenção – continua o General Luiz Guedes – estão situadas em sua maioria no Território de Rondônia e parte do Mato Grosso. Elas podem ter como ponto de referência os rios Jaci-Paraná (Pacaás-Novos), Jaru, Cantuário (Suruis), e Comemoração (Nhambiquara)”.
O Plano de Trabalho – segundo esclarece o Diretor do SPI – está dividido em duas fases: atração e pacificação dos índios e organização de Postos Indígenas para consolidar essa conquista.
— “Dessa forma, a primeira fase, que se desenvolverá durante o traçado e construção da estrada, prevê a organização de quatro equipes: a) uma de cinco homens, que acompanhará a construção da estrada, como prevenção, executando, em suas mediações, trabalhos de penetração; b) outra, composta de doze homens, atuará na região do Jaci-Paraná, onde excursionam os índios Pacaás-Novos (Rondônia); c) terceira equipe, também de doze homens, atuará juntos aos índios Suruis, na região do rio Jaru (Rondônia); d) a quarta equipe, com doze homens igualmente, atuará na região do Rio Comemoração, junto aos índios Nhambiquaras (Rondônia e Mato Grosso)”.
ASSISTÊNCIA AOS ÍNDIOS
Na segunda fase, serão organizados quatro Postos visando a prestar assistência às tribos atraídas e catequisadas.
— “A instalação desses Postos será iniciada a partir de 1961. No primeiro ano, concentrarão seus trabalhos na construção de benfeitorias; no segundo ano, procurarão resolver os problemas de transporte no local em que se encontram aqueles que permitam o recebimento de cargas, seja por meio fluvial ou aéreo, com a construção de campos de pouso; no terceiro ano, os trabalhos estarão orientados para as atividades agrícolas ou pecuárias, de acordo com as características da região”.
FOTOS

1 – (Rosto de dois Xavantes) Os Xavantes nem sempre recebem os brancos com boa vontade: alguns agrupamentos continuam inacessíveis à civilização. Serão um problema para os pioneiros que vão construir a Brasília-Acre.

2 – (Mapa da rodovia) Este deve ser o traçado provável da Brasília-Acre. Índios hostis habitam a região. No Jaci-Paraná estão os Pacaás-Novos, no Jaru os Suruis, no Comemoração os Nhambiquaras e, por fim, os Xavantes, em Goiás.
FONTE:
O JORNAL, ESTADO DE MINAS, FOLHA DE GOIAZ, CORREIO BRAZILIENSE
21 de Abril de 1960 - Página 9
CONSTRUÇÃO DA RODOVIA BRASÍLIA-ACRE (1960)
OBSERVAÇÕES
Os dois materiais são da mesma época e é interessante analisá-los em perspectiva histórica num diálogo com o passado que o antecede, o presente que vivemos hoje como desdobramento dele e o futuro que queremos construir, não se trata de forma alguma de analisar o passado com base nos valores atuais, mas refletir sobre como os valores do passado ainda se fazem presente em nossos dias.
Embora o Brasil tenha deixado para trás a sua condição de colônia portuguesa, não abdicou da visão colonizadora que o fundou, e o Estado Nacional que nasceu desse processo, na verdade herdou a perspectiva do colonizador em relação ao território e aos povos originários que aqui já estavam, e isso é nítido quando observamos os termos utilizados para se referir aos indígenas, que são retratados como um entrave ao progresso da civilização, precisando serem resgatados de sua condição de selvagens e silvícolas, por meio da catequização e assimilação da cultura do homem branco que chega construindo estradas.
O que começou lá em 1500 com a chegada das caravelas portuguesas na costa do que viria a ser a Bahia, se desdobrou nas bandeiras paulistas, missões jesuíticas, na construção de Brasília, nas rodovias que cortam o país, no latifúndio, no agronegócio e sua monocultura voltada para o mercado internacional de commodities e na negação ao direito dos povos originários existirem em seu próprio território.
O vídeo chama a atenção pelo tom heroico nacionalista que invoca, colocando os trabalhadores como soldados do progresso da civilização diante da mata selvagem, contrastando os indígenas catequizados com as tribos ferozes e os animais perigosos.
Outro aspecto que se destaca, são as expressões que colocam a natureza como algo feminino que precisa ser dominada pelo progresso masculino, com as “estradas penetrando regiões quase virgens”, numa aplicação prática dos ensinamentos do filosofo Francis Bacon que expressava a seguinte compreensão sobre a natureza:
“À natureza, devemos arrancar seus segredos e, se for preciso, torturá-la como se tortura uma mulher, para assim dominá-la e submetê-la”
Tudo isso está intimamente conectado com o Brasil do século XXI, onde o governante máximo foi eleito prometendo que nenhuma terra indígena seria demarcada durante o seu governo, promessa que está sendo cumprida com muito orgulho e disposição.
O país que hoje tem um forte lobby do agronegócio e seus coronéis, que tentam via Congresso Nacional, a liberação ampla geral e irrestrita de agrotóxicos, a abolição do licenciamento ambiental com controle do Estado, a regularização de áreas ilegalmente ocupadas em qualquer momento da história, a alteração do Estatuto do Índio determinando um marco temporal a partir da Constituição de 88, o garimpo em terras indígenas e a redução da Amazônia Legal, é basicamente o mesmo país que deu origem a essa matéria e ao vídeo que a acompanha, pautado na mesma lógica colonizadora e antiambiental.
Não é possível voltar atrás, Brasília, as estradas e tudo o que veio depois disso são fatos consumados, mas é fundamental que a título de reparação histórica os direitos dos povos originários ao território e sua cultura sejam reconhecidos e respeitados de fato, e que o Estado seja pautado por uma lógica e dinâmica que abandone essa postura colonizadora que o estruturou durante séculos, talvez até mesmo iniciar o debate sobre a constituição de um Estado Plurinacional Brasileiro, ideia que não é tão absurda se levarmos em consideração que temos cerca de 305 povos e 174 línguas indígenas, seguindo os exemplos de Equador, Bolívia e Chile.